Cemitério medieval descoberto no Poço do Borratém
Não terão conta as pessoas que por ali passaram nos últimos cinco séculos, mas poucas imaginavam o que escondia o piso calcorreado. No Poço do Borratém, artéria que liga, a partir da confluência da Rua da Madalena com a Rua Condes de Monsanto, a Praça da Figueira ao Martim Moniz, jazem ossadas de gente simples, cristã, ali enterrada entre o final do século XIV e o início do século XV.
Os esqueletos, encontrados por um grupo de arqueólogos da empresa Cota 80.86, resulta de escavações destinadas à colocação de ecopontos subterrâneos naquele local. Estão a ser desenterrados e podem ser vistos por quem ali passar.
Trata-se de uma área de nível II do Plano Diretor Municipal de Lisboa e por isso é obrigatório o diagnóstico prévio do subsolo, explicou Vanessa Filipe, coordenadora científica do projeto que desde 2017 tem vindo a ser desenvolvido para a colocação daquele tipo de equipamentos na cidade.
Gente simples
“Aqui foi só tirar os níveis recentes, começámos a escavar e apareceram os primeiros esqueletos”, diz a arqueóloga, para quem o achado não foi surpresa. Uma pesquisa prévia identificava a existência anterior de duas ermidas naquele local, por isso “a possibilidade de existirem esqueletos era enorme”.
Uma das ermidas era a de São Martim, mesmo na esquina com a Rua João das Regras, onde estaria localizado o poço que dá o nome ao arruamento, os registos identificam-na no século XVI mas os arqueólogos suspeitam da sua existência anterior.
A outra não é possível identificar claramente pelos registos cartográficos disponíveis, estaria localizada mais para a encosta, a nascente. Ambas terão desabado durante o terramoto de 1755, mas não se pense que o cemitério ficou escondido por força desse fenómeno. O tempo já se havia encarregado de o esconder.
“Homens, mulheres, jovens, crianças, adultos, há de tudo”, esclarece Vasco, que adianta tratar-se de um cemitério criado “mesmo no meio da rua.” Trata-se, continua, de “uma zona da cidade que naquele período seria mais pobre” e, em caso de necessidade, qualquer local servia para enterrar os mortos.
A necrópole está no interior da Cerca Fernandina, na área geográfica da cidade, portanto, que foi erigida entre 1373 e 1375. “Isto deve ser pós”, afirmam os arqueólogos.
Tipicamente cristãos
“É um cemitério de gente simples”, diz Vasco Vieira, arqueólogo que dirige a escavação, pois com as ossadas não foi encontrado qualquer tipo de espólio e os corpos foram sepultados diretamente na terra ou envoltos em mortalha. “Não temos moedas, não temos nada”, diz Vanessa, “os pobres tinham as doenças todas” e aqueles esqueletos revelam muitas.
Sabe-se também que os restos mortais “são tipicamente cristãos”, pois, explica ainda a arqueóloga, a forma como foram enterrados cumpre os seus rituais funerários: a cabeça virada a Oeste (poente) e os pés a Este (nascente), “para quando se levantarem olharem para o Juízo Final. É tudo muito protopático, simbólico”.
As escavações cingem-se ao retângulo que demarca o local para a instalação dos ecopontos, mas percebe-se que o cemitério será mais extenso e esses esqueletos assim permanecerão. No espaço em prospeção estão dispostos em dois níveis de profundidade, poderão ser mais, nalguns “buracos” ainda se encontram restos das pedras de cabeceira.
Os ossos explicam
Ali trabalham diariamente seis arqueólogos e uma antropóloga, Sónia Ferro, esta com um papel crucial em todo o processo. “É crime nós levantarmos esqueletos”, diz Vanessa, para explicar de seguida que após o trabalho de escavação cabe a Sónia a tarefa de os marcar, identificar e neles estudar as patologias associadas. Uma espécie de polícia científica.
Entre os vários esqueletos está o de uma criança que terá morrido com nove meses e foi a antropóloga quem, pela análise dos ossos, percebeu que a causa da morte terá sido uma infeção, eventualmente uma tuberculose óssea.
Outro, de um adulto, que intriga Vasco, tem entre a a cervical e a boca duas pedras encaixadas. Porquê, perguntamos, Sónia Ferro identificará melhor mas tudo indica que poderá ter sido decapitado ou enforcado, as pedras terão sido colocadas para encaixar a cabeça no sítio. “Uma coisa muito medieval”, remata.
Ao vivo
Começaram em 26 de junho, na semana a seguir iniciaram as escavações e menos de um mês depois já tinham levantado mais de meia dúzia de esqueletos. “Demoramos cerca de um dia a defini-los”, explica Vanessa. Já a Sónia levantará cerca de um ou dois por dia, consoante “a complexidade”, esclarece Vasco.
Durante três anos os esqueletos ficam à guarda da empresa, para estudo científico, depois passarão para o depósito do Centro de Arqueologia de Lisboa.
Apesar de, e necessariamente, delimitadas por grades, as escavações são perfeitamente visíveis pelos transeuntes e isso constitui um verdadeiro acontecimento na zona. Fotografias, perguntas, comentários, tudo ali acontece enquanto a equipa trabalha. A ideia é “permitir que as pessoas participem”, diz Vasco.
Vão ficar por ali mais duas semanas, pelo menos, dependendo dos níveis de esqueletos que encontrarem.
Depois seguirão para outra empreitada, quiçá de achados entusiasmantes como este. De resto não se trata da primeira descoberta no âmbito deste projeto, sublinhe-se, outras revelações arqueológicas foram já desbravadas em locais como o Rossio, o Largo de Santa Bárbara, o Largo da Atafona, a Rua Nova do Carvalho ou o Largo dos Lóios. Mas a essas voltaremos noutra oportunidade, para já os cinco minutos de fama são estes "novos amigos" que durante tanto tempo permaneceram totalmente incógnitos.