Quantos já ouviram dele falar, mas pouco dele sabem? Muitos até o associam a esgoto, alguns nem por isso. Outros, mais antigos, falam e sabem da ribeira – a tal Ribeira de Alcântara – que vinha da Amadora em corrida livre até ao Tejo, por onde chegaram a navegar barcos, onde se lavava roupa e brincavam crianças, havia indústria, agricultura em férteis terrenos, fornos de cal e, mesmo, um moinho de maré.

O crescimento das cidades está, inevitavelmente, ligado à procura de soluções para o escoamento dos detritos humanos, que, em regra, eram despejados para as valetas e ribeiras. O Caneiro de Alcântara foi, exatamente, uma consequência do crescimento da cidade de Lisboa.

Fomos saber dele. Do seu “nascimento”, pelo que passou e o que é hoje. Pesquisámos e visitámo-lo, guiados por quem o conhece como ninguém: Fernando Fernandes, técnico do departamento de Saneamento da Câmara Municipal de Lisboa, que nos contou da sua origem, do porquê da sua construção e da sua importância ainda hoje.

Pelas entranhas da cidade

Junto à Quinta do Zé Pinto, em Campolide, onde já se prepara a abertura de um túnel que ligará Monsanto a Chelas no âmbito do Plano Geral de Drenagem de Lisboa e permitirá reduzir os riscos de cheias e inundações na zona de Alcântara, acedemos ao velhote caneiro.

É ali que desaguam os ramais que trazem as águas residuais de jusante: o braço de Benfica e o braço de Sete Rios. 

Ainda cá fora, ao som do matraquear metálico provocado pela máquina que preparava a entrada da tuneladora responsável pela abertura do novo túnel, uma espécie de martelo gigante, vestimos os fatos de proteção.

O cheiro já nos faz torcer o nariz, “é só durante dois ou três minutos, depois habituam-se”, diz, à guisa de sossego, um dos técnicos que nos ajuda, para depois alertar que “as luvas nunca se devem tirar”. Lá dentro é um viveiro de micróbios e de bactérias, por ali passa uma parte importante dos esgotos da cidade. Máscara também é precisa, “se alguém tem problemas de respirar em sítios abafados diga, para estarmos atentos.”

Enquanto descemos o largo e fundo poço de acesso, a adrenalina sobe. Estranha sensação esta de penetrar nas entranhas da cidade, túnel escuro e frio, que se reveste no entanto de uma estranha beleza. Pela dimensão, pelo simbólico, pela água castanha que corre solta, feita rio, pelo breu no horizonte sarapintado de pequenas luzes que guiam a expedição.

Percorremos-lhe quinhentos metros apenas. Mais ou menos. O suficiente para lhe percebermos a dimensão, para a sentirmos.

Num vai e vem, passam por nós trabalhadores com carros de mão. Vazios para lá, cheios para cá. Cheios de detritos que, mais adiante, veremos correr de uma pequena galeria lateral. Resultam das furações que à superfície decorrem, e é preciso removê-los.

São várias, de resto, as galerias laterais, que Fernando Fernandes nos explica tratarem-se dos primeiros acessos ao caneiro. Só mais tarde, e à medida que foi sendo necessário, se construíram maiores entradas, como aquela por onde iniciámos a nossa exploração.

Acompanham-nos técnicos zelosos. Uma espécie de médicos de caneiro, que lhe procuram as doenças e apontam a cura. Pertencem à equipa de inspeção de coletores, que naquele momento dá apoio à nossa visita, particularmente na criação de condições de segurança. Alguns recentemente recrutados e ainda em formação, explica-nos o nosso cicerone.

Voltamos para trás, sempre maravilhados pelo enorme túnel de betão. Subimos de novo à superfície, ofegantes. Corpos transpirados pela ação das brancas vestes, uma espécie de fatos de macaco a fazer lembrar os da polícia científica, de que nos livramos apressadamente. E das luvas. E das máscaras. O cheiro, que lá baixo até já parecia ter desaparecido, far-nos-á companhia ainda por algum tempo, até nos dias seguintes.

Cá em cima, a cidade continua na sua azáfama, lá em baixo o rio dos seus detritos segue viagem. Sem parar, mas agora já não em direção ao rio, como seguia quando foi mandado construir o caneiro, pois mais à frente é desviado para a Estação de Tratamento de Águas Residuais.

Um muro transversal, com cerca de 1,30 m de altura, disso se encarrega. 

Caneiro de Alcântara - vídeo 01


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Um velho e insalubre problema

"Já em meados do século XVIII, a Ribeira de Alcântara tinha sido identificada como um pólo de insalubridade na cidade de Lisboa, concretamente no bairro de Alcântara”, conta-nos Fernando Fernandes.

Um problema que se foi agravando ao longo dos tempos, pois pela ribeira corriam, a céu aberto, as águas insalubres provenientes de uma boa parte das habitações de Lisboa, e algumas da Falagueira (hoje pertencente ao concelho da Amadora).

Na Revista Municipal n.º 27, de 1945, encontramos uma interessante abordagem aos problemas da Higiene Pública da cidade (“Grandes Problemas de Lisboa - Caneiro de Alcântara”, Revista Municipal de Lisboa, 4.º trimestre de 1945.

Aí se refere que, desde o século XV, “existiam canos na capital”, os quais “para pouco mais serviam do que ao esgoto das águas meteóricas”. Os despejos domésticos eram depositados nas praias, nas montureiras ou diretamente nas ruas.

Remonta a 1484 a primeira determinação oficial conhecida de limpeza dos canos, adianta o artigo, e dois anos depois terá sido ordenada, por carta régia, a construção de “canos de primeira e de segunda ordem” nas principais ruas da cidade, bem como o impedimento de vazar nas ruas antes da “hora do sino”.

Em 1871, Lisboa contava com 82 canos principais que serviam de esgoto às casas e ruas, relata-se ainda, “um deles era o que tinha seu boqueirão ao caneiro de Alcântara.”

Os problemas de insalubridade eram de tal ordem, que consideramos importante transcrever na íntegra o seguinte excerto do documento:

"Com os seus dez quilómetros de extensão ao longo da falda ocidental da serra do Monsanto, desde as alturas da Falagueira até ao Tejo, a ribeira de Alcântara é, desde tempos remotos, problema de excepcional agudeza nas preocupações de sanidade da capital. Considerada a bacia de drenagem mais importante do sistema de saneamento de Lisboa, pois abrange uma área de 4 689 hectares incluindo 321 mil habitantes (58 por cento da área total do referido sistema), a sua bacia hidrográfica recebe, além das águas pluviais, os esgotos urbanos correspondentes a grande parte da área urbanizada de Lisboa - talvez meia cidade. Serve de depósito dos detritos de toda a espécie que provém, sobretudo, dos pequenos e pobres aglomerados que se encontram ao longo do seu curso - Rabicha, Sete Moinhos, Cascalheira, Liberdade, Santana, Quintinha, Vila Pouca e Ponte Nova.

Esta ribeira, que, como se vê, desempenha funções de colector geral das redes de esgoto de grandes zonas urbanizadas - Avenidas Novas, Palhavã, Benfica, Carnide, todo o vale de Alcântara com Campolide, Campo de Ourique, Estrela, etc., corre a céu descoberto (...)."

Quando foi iniciada a sua construção, em 1945, a saúde pública e as condições sanitárias dos bairros limítrofes eram a principal vantagem aduzida para o encanamento da ribeira, mas o plano de urbanização do vale de Alcântara foi também um incentivo poderoso.

Existia apenas um troço já encanado, a jusante. Nos finais do século XIX, parte da ribeira havia sido tapada para a colocação da via férrea que ligava Alcântara-Terra a Campolide, e daí a Sintra e Torres Vedras, logo de seguida as obras para a 1.ª secção do Porto de Lisboa fizeram tapar a parte que desemboca no rio Tejo.

Foi, aliás, nesse período, que desapareceu a velhinha ponte de Alcântara, uma construção romana de pedra construída sobre a Ribeira de Alcântara, junto à Rua Prior do Crato (antiga Rua Direita do Livramento). Ponte que, saliente-se, deu o nome à freguesia - do árabe al-quantãrã: "a ponte".

Uma obra de envergadura

Voltamos à conversa com Fernando Fernandes, para sabermos que o projeto para a canalização da ribeira foi elaborado na década de 1930 do século passado e ficou concluído em 1939.

A obra só viria a ser iniciada em 1945 e ficou concluída no final de 1967; foi inaugurada a 5 de janeiro de 1968, nas Portas de Benfica, diz-nos ainda [Foi posta a concurso em 14 de março de 1944 e a adjudicação ocorreu no dia 1 de maio desse ano, por 21.723.277$60. Os trabalhos de execução preliminares começaram em dezembro de 1944, mas só em junho de 1945 se iniciou a betonagem, devido à falta de cimento, problema que viria a ser ultrapassado].

“É uma de grande envergadura e foi feita por fases”, sublinha: “A primeira fase, aquilo a que chamamos o troço jusante, que se desenvolve entre o ponto onde estamos, Campolide, e a zona de Alcântara. Em concreto, a estação de Alcântara-Terra. Essa fase foi entre 1945 e 1950; de 1955 a 1968 foi construída a segunda fase, aquilo a que nós chamamos o Braço de Benfica e o Braço de Sete Rios.”

Foi construído em betão simples e Fernando Fernandes salienta que se trata de uma secção "projetada especificamente para esta obra, que teve mesmo a colaboração de algumas universidades americanas.” A dimensão máxima é de oito metros de largura por 5,15 de altura e estende-se por cerca de dez quilómetros.

Tem, ainda hoje, forte importância na drenagem de uma parte substancial das águas residuais domésticas e pluviais da cidade, mais ainda, dado o crescimento urbanístico e populacional, com a consequente impermeabilização dos solos.

Guardião do Caneiro

Fernando Fernandes: Técnico de Saneamento; trabalha na Câmara Municipal de Lisboa há 44 anos, no Saneamento há 34.

“Trabalhar no setor do Saneamento, e em particular na cidade de Lisboa, é um desafio constante que promove a evolução e o desenvolvimento profissional e pessoal contínuo. É bastante motivador saber que estamos a trabalhar para a contínua melhoria da qualidade de vida na nossa cidade e a promover proteção ambiental e, desta forma, dar o nosso contributo à comunidade.”

Dezembro / 2023