Fomos conhecer O Manuscrito Histórico, um estabelecimento classificado como “Loja com História”.
Aqui, cada objeto revela uma estória surpreendente. Um espaço exíguo, mas onde colecionadores e curiosos se podem perder.
Num túnel abobadado do Palácio Valadares, na calçada do Sacramento, no Chiado, encontra-se um dos estabelecimentos classificados em Lisboa como “Loja com História”. Trata-se de O Manuscrito Histórico, loja especializada em manuscritos, gravuras, desenhos e livros antigos, além de outras raridades que Teresa Margarida Rebelo, filha do fundador, vai encontrando em espólios e leilões.
Antiguidades, uma tradição familiar
O gosto por antiguidades é uma tradição da família. Os pais de Teresa sempre tiveram talento de colecionadores, e José Rebelo, quando se reformou, fundou com o seu filho este estabelecimento, em 1989, pouco depois do grande incêndio do Chiado. Agora é Teresa, que depois de uma carreira como jornalista, se apaixonou pelo negócio da família e resolveu tomar a loja em mãos.
Raridades e curiosidades para interesses diversos
Apesar de pequeno, o espaço transborda de curiosidades. Teresa aponta-nos, como exemplo, uma bíblia ilustrada do século XVII. Numa das ilustrações aparece representado um sacerdote com óculos “o que não é nada vulgar para a época”, diz a especialista em antiguidades impressas. (Não há dúvida de que quando o olhar é guiado por quem sabe, os objetos revelam significados imprevistos.) O preço desta bíblia não será dos mais acessíveis, mas, para que se saiba que nesta loja há artigos para várias bolsas, a proprietária apresenta-nos litografias do século XIX que se vendem por pouco mais de vinte euros.
Teresa prossegue a enumeração, fazendo-nos girar sobre nós próprios: aqui, uma edição rara de Les Enfants Terribles, de Jean Cocteau; atrás de nós, uma gravura do marechal Wellington, o das lutas peninsulares contra as invasões napoleónicas; ali, uma grande e expressiva gravura inglesa, de finais do século XVIII, representando uma cena de Macbeth, com as suas personagens demoníacas; ao lado, uma fotografia da que viria a ser a rainha Dona Amélia, vestida com trajes campestres, de autoria presumida de Carlos Relvas... E assim poderíamos continuar, a descobrir raridades neste “baú”.
"Os manuscritos são documentos únicos"
Quanto aos manuscritos, que dão o nome à loja, perguntamos: muitos estão em reserva noutro espaço, porque a loja não comporta tudo; existem vários disponíveis, nomeadamente de escritores e escritoras portuguesas. E se não houver em reserva é quase certo que Teresa Rebelo consegue encontrar. Também aqui há “preços muito diversificados”, diz. Emoldurar um poema escrito à mão de Natália Correia ou um trecho de Eça de Queirós pode ser uma boa ideia quando se trata de presentear amigos no aniversário. Afinal, um manuscrito é um documento único, irrepetível, que nos aproxima de quem escreve. E mais uma curiosidade: os manuscritos são dos poucos objetos que não se podem comprar online – percebe-se porquê.
Os clientes jovens estão a aumentar
O tempo e a dedicação dos proprietários trouxeram a este espaço especialistas e curiosos formando uma clientela fiel. Há também os turistas que entram e que acabam por levar consigo uma recordação mais esclarecida da cultura nacional. Os jovens interessados no “Manuscrito” estão também a crescer. E depois há a divulgação “boca a boca”, amigos de amigos que encontram em O Manuscrito Histórico, razões para ficarem atentos. Teresa Rebelo até pode não ter na loja exatamente o que o cliente procura, mas sabe, como é usual no ramo das antiguidades, o sítio certo onde procurar – porque a sua prioridade, diz, “é ter clientes satisfeitos”. Um desses clientes satisfeitos será, porventura, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que bem conhece esta Loja com História.
O Manuscrito Histórico é uma das 163 lojas classificadas, em Lisboa, como “Loja com História”, um programa municipal, criado em 2015, que apoia as lojas tradicionais. Para conhecer o programa e outras “lojas com história”, consulte:
O Palácio Valadares
A loja O Manuscrito Histórico está instalada no Palácio Valadares. Localizado na calçada do Sacramento, entre os números 34 a 54, este palácio é um exemplar setecentista de arquitetura nobre pombalina.
O palácio deve o seu nome à família Valadares. Sabe-se que em meados do século XVII, o edifício aí construído estava na posse de D. Miguel Luís de Meneses, conde de Valadares. A família habitou-o de forma permanente até ao terramoto de 1755, que não poupou o palácio da ruína quase total. Depois de integralmente reedificado, sofreu um novo revés: um incêndio em 1798 que consumiu todo o seu recheio. As obras que se seguiram repararam o estrago maior, mantendo-se, no essencial, o aspeto exterior, tal como fora traçado em 1785. Mas os Valadares deixaram de residir no local.
Fábrica, bailes e colégios
Em finais do século XVIII, numa parte do edifício instala-se uma fábrica de arame, que aí permaneceu até 1817. Em 1819, o edifício é arrendado pelo seu proprietário a um grupo de clubistas, a Assembleia Portuguesa, que faz obras de adaptação com vista à utilização de parte do edifício para festas e bailes, frequentados por aristocracia e realeza.
Mudando-se a Assembleia Portuguesa para outras instalações, é a vez de no palácio se instalar, em 1835, o Club Lisbonense ou Club do Carmo, realizando-se para o efeito nova campanha de obras. Entretanto, na sobreloja do palácio, assentam residência, entre 1836 e 1850, os primeiros condes de Paraty. Até meados do século XIX, as festas prosseguem, com grande sucesso, como atestam as memórias do marquês de Fronteira, que era um dos diretores do Club Lisbonense.
Depois desse período, parte do espaço passa a funcionar como colégio feminino. Sucedem-se outros colégios, incluindo o designado Colégio Alemão, o Liceu do Carmo, uma secção do Liceu Passos Manuel, a Escola Veiga Beirão (1941-1996), e, por fim, a Escola EB 2+3 Fernão Lopes (até 2004). Curiosamente, a ligação deste local ao ensino vem de muito antes da construção do palácio: aqui funcionaram as casas do chamado Estudo Geral, ou seja, o embrião da Universidade de Lisboa, criada por D. Dinis em 1290.
Além de escolas, outras partes do edifício abrigaram em tempos a Direção Geral dos Correios, Telégrafos e Faróis (1881-1887) e estiveram arrendados para habitação.
Património protegido
Atualmente, além dos espaços comerciais, o palácio mantém um posto de atendimento da freguesia de Santa Maria Maior (antiga Junta de Freguesia do Sacramento). E à exceção das lojas que pertencem a privados, a antiga área residencial nos pisos superiores encontra-se agora devoluta e é propriedade do Estado.
O Palácio Valadares está patrimonialmente protegido pela sua inclusão na classificação da Lisboa Pombalina, na Zona de Proteção do Elevador de Santa Justa e na Zona de Proteção da Igreja do Convento do Carmo.
Fonte: monumentos.gov.pt
Julho / 2023