É o primeiro espaço de criação, Hub Social e galeria de Arte Bruta, que promove trabalhos de artistas contemporâneos e criativos com doença mental.
Nasceu em março de 2019, no Beato, e surge com o propósito de conquistar a dignidade e o reconhecimento dos artistas que lá trabalham. Sem horários a cumprir, o Manicómio oferece liberdade. A maior terapia.
“Paz. Muita paz. Uma coisa que eu nunca tive na vida”, desabafa Anabela Soares, quando lhe perguntámos o que sente ao trabalhar no projeto Manicómio. Com uma infância dura, acreditando desde sempre que nunca ninguém gostaria dela, Anabela encontrou ali um porto seguro. “É raro conseguir confiar em alguém, mas o Sandro e o Zé fizeram-me acreditar que era possível”.
Anabela Soares vive com esquizofrenia há décadas. Foi no trabalho com o barro que encontrou forma de exprimir o que sente e “deitar os monstros cá para fora”. A ceramista revela que os monstros que cria em barro refletem o mundo que criou para si e “mais ninguém lá cabe”. “Tenho monstros maus e monstros bons. A minha esquizofrenia ofereceu-me essas duas prendas”.
Depois de ter começado por fazer bonecos de peluche, um dos quais um urso gigante representando o peluche que nunca teve em criança, Sandro Resende e José Azevedo, fundadores do projeto, encorajaram a artista a trabalhar o barro, uma técnica que nunca tinha experimentado.
Neste momento já expôs o seu trabalho em vários locais e fez parte da representação de artistas portugueses na “Outsider Art Fair 2020", em Nova Iorque. A sua última exposição “O dia em que perdi o pé”, uma mostra que inaugurou no passado mês de março, surge na sequência da residência artística realizada pela artista, no Museu Bordalo Pinheiro, entre finais de fevereiro e inícios de março de 2020. Foi a primeira vez que o Museu Bordalo Pinheiro acolheu uma residência artística, referindo-se a Anabela Soares como “uma das artistas mais interessantes e em crescimento do panorama contemporâneo”.
Anabela Soares descobriu a sua vocação e um caminho para manter a alegria e o equilíbrio: “Pode haver pessoas felizes, mas desde que eu esteja num espaço dirigido pelo Zé e pelo Sandro sou a mulher mais feliz do mundo. E que me deixem fazer os meus monstros, claro”, comenta, soltando uma gargalhada.
Desmistificar a doença mental
O projeto Manicómio foi pensado por Sandro Resende e José Azevedo, fundadores da Associação de Desenvolvimento Criativo e Artístico P28, onde dão aulas de artes plásticas a doentes do Hospital Júlio de Matos, também em Lisboa. O trabalho resultou em várias exposições que uniram artistas com doenças mentais, a nomes consagrados do meio, tanto portugueses como internacionais. Foi o caso de Emir Kusturica, Pedro Cabrita Reis, Jeff Koons e Jorge Molder.
O Manicómio nasceu em março de 2019 com o principal objetivo de desmistificar o estigma associado à doença mental, incentivar a empregabilidade dos doentes e promover a sua inclusão social. "Isto não é terapia, é arte", faz questão de sublinhar Sandro Resende, apesar de os artistas garantirem que aquele espaço é essencial ao seu bem-estar. “Eu nunca vi uma ficha clínica, o que me interessa é a pessoa e o que ela quer fazer”.
Sandro Resende defende que a liberdade dada aos artistas cria responsabilidade. “Os horários são as próprias pessoas que os fazem e quando vêm trabalhar chegam com muita vontade de fazer coisas bem e o resultado vê-se tanto no trabalho, como também na autoestima”.
Os artistas recebem uma bolsa, que inclui refeições, transportes e um salário, além de 70% da receita que resultar das vendas das peças produzidas e 90% dos workshops que realizam. “O mais problemático disto tudo é a lista de espera”, reconhece Sandro: “Temos mais de 80 pessoas em lista de espera para os próximos espaços, porque se percebe que tratamos as pessoas com dignidade e não como doentes que são”.
Quando um artista precisa de um médico, de um psicólogo ou psiquiatra, a ação é imediata, ao contrário dos seis meses de lista de espera dos hospitais públicos. A verdade, é que desde que começou, o Manicómio não tem tido situações de descompensações que, por norma, diz Sandro Resende, ocorrem de dois em dois meses, em pessoas com o historial médico destes artistas, patologias que podem ir da esquizofrenia à depressão.
Uma mão cheia de criativos
O cofundador do espaço explica que um dos objetivos do Manicómio é que as pessoas deixem de precisar de estar integradas no projeto. “Somos uma espécie de muleta. A ideia é começarem a trabalhar mais em casa, o que nos permite tratar mais pessoas”.
Sandro revela que durante este período, cerca de um ano, já têm duas pessoas neste caso e outras duas a criar as suas próprias empresas, duas startups, “para saírem daqui para fora”.
O combate ao estigma da doença mental passa pela rejeição da dependência de subsídios, procurando-se realçar o valor das obras e o trabalho dos artistas do Manicómio junto do mercado.
O Manicómio já ganhou concursos de criatividade, recebeu o prémio de Mérito pelo Ministério da Saúde, tem diferentes projetos de arte e conta com o apoio do Turismo de Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, Juntas de Freguesia, e marcas como a Central de Cervejas, Fidelidade, Herdade da Malhadinha Nova e Arcádia.
Exposição "O dia em que perdi o pé" - Museu Bordalo Pinheiro
“Trabalhamos com marcas como criativos e não como doentes. Procuramos marcas com história, com muita presença e a nossa ideia é manipular um bocadinho a marca e torná-la um bocadinho nossa. A proposta é lançada para os artistas e eles é que decidem com que marca querem trabalhar. A marca ganha dinheiro connosco e nós ganhamos com a marca. É uma troca justa”, explica Sandro Resende.
Exemplo disso é a chocolataria portuguesa Arcádia, que se uniu aos artistas orientados por Sandro para criarem os rótulos e o conceito de embalagens para o lançamento de novos chocolates.
Os chocolates foram criados em forma de comprimidos e vêm dentro de um frasco de vidro com tampa de cortiça, fazendo lembrar os antigos frascos de medicamentos. A embalagem foi criada com ilustrações dos artistas do Manicómio. Em tom de ironia, que joga com o aspeto da medicação, o Manicómio pretende ajudar a quebrar o estigma e o tabu associado às doenças mentais.
Sandro Resende sonha com a possibilidade deste projeto ser replicado noutras zonas do país: “Este espaço desperta um grande interesse e por isso acho que existe grande viabilidade nesse salto para novos espaços, fora da capital”.
Para um futuro próximo trabalham-se novas parcerias e áreas de ação. Uma revista, uma rádio, mais produtos com marcas e a abertura de mais dois espaços em que um deles será semelhante a uma fábrica de cerâmica, onde irão trabalhar outro tipo de pessoas que estão nos hospitais internados e que não têm, para já, capacidade de sair. “O emprego na saúde metal é muito baixo e não há uma grande resposta e por isso estamos a trabalhar essa área”.
O projeto foi fundado pela associação P28 que dinamiza o pavilhão 31 do Hospital Psiquiátrico de Lisboa. Surge num momento em que um quinto da população portuguesa sofre de doenças mentais, em que Portugal é o quinto país da União Europeia com mais casos de doenças mentais, sendo a ansiedade a depressão os problemas mais comuns. Dados revelados pelo relatório Health at a Glance 2018 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico.
O tempo de espera por uma consulta de psiquiatria no Serviço Nacional de Saúde é em média, de 6 meses e de psicologia, de 5 meses. Em regime privado, uma consulta de psiquiatria custa entre 75 e 120 euros, e de terapia entre 60 e 100 euros. A consulta no Manicómio tem um preço fixo de 30 euros e a marcação é direta.
Fundadores do Manicómio
Sandro Resende
Licenciado em Pintura pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, e com Curso de Pintura no Instituto de Artes e Ofícios da Fundação Ricardo Espírito Santo, o lisboeta Sandro Resende lidera o P31 no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, espaço de expressão artística e reabilitação, onde aconteceu o mediático projeto de colaboração com artistas consagrados como Jeff Koons e Pedro Cabrita Reis. Antes do P31 foi o diretor artístico do P27 e P28, também no Centro Hospitalar conhecido como Júlio de Matos, sempre como diretor artístico das exposições de Arte Bruta. No Espaço3 levou a arte contemporânea para o Centro Comercial Alegro Alfragide, e criou o espaço expositivo Contentores nas Docas de Alcântara, projeto que chegou a ser apresentado na Tate de Liverpool.
José Azevedo
Professor no Instituto Português de Fotografia desde 1988, o monitor no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa é o responsável pela formação de fotografia e vídeo. No mesmo Júlio de Matos, apresentou desenhos para o Pavilhão 27 e 28, e foi o cocriador do P28. É o coautor dos Catálogos do Ciclo de Pintores Surrealistas, e do “Portadores da Luz”, livros da Delegação Paraolímpica aos Jogos Olímpicos de Sidney (2000) e Grécia (2004).
Prémios
Junho de 2019 - Ouro & Prata Corpcom.
Prémios Lusófonos da Criatividade, recebidos pela Corpcom, com Ouro na categoria de RP - Eficácia em Campanha de Relações Publicas - e Prata na categoria de RP - Responsabilidade Social/Ambiental da Empresa.
Menções Honrosas
Abril de 2019 - Ministério da Saúde - Reconhecimento dos vinte anos de trabalho no CHPL, onde Sandro Resende e José Azevedo fundaram o Pavilhão 28.
Contactos
Rua do Grilo 135, Lisboa
www.manicomio.pt
@manicomio.portugal
manicomio.pt
Pode interessar
Abril / 2020